domingo, 26 de novembro de 2017

Pensatas de Domingo. A crise ética e moral dos estadunidenses e a luta de classes nos EUA.



Jorge Vital de Brito Moreira

Querido leitor,
Você me pergunta se tenho realizado uma análise recente sobre as últimas e alarmantes notícias dentro dos Estados Unidos da América (EUA): sobre os atuais massacres humanos, sobre as crises das drogas e dos opioides, sobre as recentes denúncias de violação e abusos sexuais contra os jovens (mulheres e homens) estadunidenses por parte de membros ricos e poderosos ligados a Hollywood, ao governo estadunidense e à mídia corporativa e qual é a relação entre todos esses fenômenos e o aumento da doença mental conhecida pelo nome de Transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e sua conexão com a luta de classes nos EUA.
O Transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), tem sido associada a uma multiplicidade de eventos traumáticos de vários tipos, principalmente com as tragédias e catástrofes provocadas pela mão e obra dos seres humanos e as tragédias e catástrofes provocados pelos fenômenos naturais.
Entre as tragédias e catástrofes provocadas por mão e obra dos seres humanos se encontram as guerras, os assassinatos, as torturas, o terrorismo, os sequestros, as agressões físicas violentas, as várias formas de abuso sexual e as diferentes formas de abuso psicológico ou emocional, como o acosso laboral (mobbing) e o acosso escolar (bullying). Voltarei as tragédias e catástrofes provocadas pelos seres humanos  um pouco mais adiante.
 Neste momento gostaria de mencionar que entre as catástrofes naturais se encontram os terremotos, os tsunamis, os furacões, as erupções vulcânicas, os deslizamentos de terra, as inundações, etc. Como muitos já sabem, as mais célebres catástrofes naturais que se abateram recentemente sobre os EUA, foram o furacão Katrina, o furacão Irma e o furacão Maria.
O furacão Katrina do mês de agosto de 2005 foi um ciclone tropical extremamente destrutivo e mortal que foi um dos desastres naturais mais caros e um dos cinco furacões mais mortíferos na história dos Estados Unidos mas a administração republicana de George W. Bush [supremacista, racista, militarista e notável defensora dos interesses da camada mais rica e mais poderosa do país (menos de 1%  dos estadunidenses) fez muito pouco ou quase nada para defender parte da população daquela área destruída que era predominantemente povoada por afroamericanos, ou seja gente pobre e discriminada.  Em seu lugar,  George W. Bush preferiu continuar financiando as guerras contra o Iraque e o Afeganistão, para destruir a infraestrutura e a população civil daquelas nações invadidas e torturadas pelas tropas dos EUA.
O terrível furacão Irma de agosto de 2017 causou danos generalizados e catastróficos ao longo de seu percurso, particularmente nas partes do nordeste do Caribe e na Florida Keys mas a administração do atual presidente Donald Trump [supremacista, racista, militarista e notável defensora dos interesses da camada mais rica e mais poderosa do pais (menos de 1%  dos estadunidenses) também fez muito pouco para ajudar a população pobre vítima daquele desastre supostamente natural.
O assombroso furacão Maria de setembro de 2017, que classificado dentro da categoria 5, atingiu a ilha de Puerto Rico causando danos devastadores em vidas humanas e em bens materiais para a população da ilha (a rede elétrica da ilha, por exemplo, foi em grande parte destruída, e a reparação levará meses para completar, provocando a maior queda de energia na história americana.
Apesar dos resultados catastróficos e trágicos para a população da sua colônia porto-riquenha, o governo do presidente Donald Trump se negou a ajudar  devidamente (financeira e materialmente)  a população predominantemente latinoamericana da ilha. Em seu lugar, Donald Trump preferiu aumentar o pressuposto militar para continuar financiando as guerras contra a população do  Oriente Médio e para continuar suas ameaças de deflagrar a terceira guerra nuclear contra a Coreia do Norte.  
Entre as tragédias e catástrofes recentes provocadas pela mão e obra de cidadãos estadunidenses, dentro EUA, se encontram o assassinato massivo na  boate de Orlando, no estado da  Flórida, em 2016, e o extermínio na cidade de Las Vegas, no estado de Nevada, em 2017.
O assassinato em massa na  boate de Orlando, sucedido em 12 de junho de 2016, foi realizado por Omar Mateen, um guarda de segurança de 29 anos, que matou 49 pessoas e feriu outras 58 pessoas em um ataque escalofriante dentro da boate Pulse, uma boate gay que celebrava uma "Noite latina" e, portanto, a maioria das vítimas eram latinos. É o incidente mais mortal de violência contra os povos LGBT na história dos EUA. Na época, foi considerado o tiroteio mais mortal por um único atirador nos EUA, sendo superado apenas no ano seguinte pelo de Las Vegas.
O assassinato massivo na cidade de Las Vegas, sucedido na noite de 1 de outubro de 2017, foi realizado por Stephen Paddock de 64 anos, um atirador que abriu fogo contra uma multidão de 22 mil espectadores no festival de música “Route 91 Harvest” no Las Vegas Strip, deixando 58 pessoas mortas e 546 feridas. Naquela noite, Stephen Paddock disparou centenas de balas desde  sua suíte no 32º andar do hotel vizinho, Mandalay Bay. Este assassinato massivo foi o mais mortal cometido por um indivíduo nos Estados Unidos.
Os assassinatos e tragédias massivas na boate de Orlando e na cidade de Las Vegas reativaram o debate sobre as leis de armas nos EUA mas como sempre, até hoje, infelizmente para os familiares das vítimas e da maioria da população, não apareceu por parte da presidência, do senado, da câmara de representantes deste país, nenhuma resposta legalmente apropriada e satisfatória para tratar de invalidar a propriedade individual e privada de milhões de armas  mortíferas que são usadas diariamente contra a população estadunidense.
Quanto às crises das drogas e dos opioides, recentemente, no dia 26 de outubro de 2017, o presidente Donald Trump concordou com o relatório dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (Centers for Disease Control and Prevention CDC), um dos principais institutos nacionais de saúde pública dos Estados Unidos e declarou a crise do opioides do país como uma "emergência de saúde pública" no país. Já faz tempo que importantes sociólogos, psicólogos, e médicos, analistas de saúde publica dos EUA,  veem denunciando as políticas do governo e das instituições médicas estadunidenses para as companhias farmacêuticas dos EUA. Por exemplo,  o notável sociólogo e professor estadunidense, James Petras, recentemente denunciava a política racista do ex presidente Barack Obama contra afroamericanos, pois, eles, quando eram acusados de delitos não violentos relacionados com o uso de drogas (traficantes e consumidores) tinham sido encarcerados a um ritmo muito maior que os dos brancos, enquanto as gigantescas, poderosas, ricas elites farmacêuticas e os médicos que prescrevem os narcóticos que estimulam a adição com os opioides obtiveram benefícios (lucros econômicos) cada vez maiores, com a total impunidade no governo de Obama (1).
Faz pouco tempo, o jornal estadunidense, Democracy Now, publicou a seguinte notícia: "O presidente Trump anunciou que está dirigindo o Departamento de Saúde e Serviços Humanos para declarar a “crise dos opioides” como uma emergência de saúde pública – mudando os seus planos, anunciado em agosto, de declarar a “crise dos opiodes” como algo muito mais sério, como uma "emergência nacional". Esta mudança significa que o governo federal não direcionará, a partir de agora, novos fundos federais para enfrentar a crise dos opiáceos, que já matou 64 mil americanos no ano passado"(2). E mais uma vez, os leitores podem constatar que o presidente atual dos EUA (como o anterior) não é capaz de compreender a principal contradição de sistema capitalista: sacrificar o sistema de saúde pública estadounidense com o objetivo de continuar produzindo uma gigantesca massa de lucros financeiros para as empresas farmacêuticas que produzem opiáceos.
Quanto as denúncias de acosso, abuso e violação sexual de jovens estadunidenses (mulheres e homens) por parte de indivíduos pertencentes à classe social dos ricos e poderosos na sociedade estadunidense, seria relativamente fácil fazer uma lista abreviada de alguns casos recentes tanto do presente como do passado registrando o nome das celebridades acusadas nestas denúncias. Começando por Harvey Weinstein (o produtor de filmes e séries de televisão cujo poder e bons contatos dentro e fora de Hollywood, contava com o apoio de aliados poderosos pois doava grandes somas de dinheiro a políticos do Partido Democrata, tais como Barack Obama e Hillary Clinton). Graças a essas credenciais "progressistas", Harvey Weinstein conseguiu contratar a advogada Lisa Bloom, conhecida por sua atividade a favor dos direitos das mulheres). Entre os artistas de Hollywood, da indústria cinematográfica e discográfica (de hoje e de ontem)  se encontram Kevin Spacey, Bill Cosby, Al Franken, Michael Jackson, Roman Polanski, Dustin Hoffman e outros. Entre os políticos destacados se encontram os ex presidentes George Bush (o pai) e Bill Clinton, o senador pelo estado de Alabama, Roy Moore (acusado por nove mulheres de abusar sexualmente delas quando eram menores de idade). Entre as grandes figuras da mídia corporativa estadunidense se encontram o ex executivo da Fox News Channel, Roger Ailes, os apresentadores Charlie Rose, Bill O'Reilly e outros. Os casos de acosso, abuso e violação sexual também teem sido denunciados em quase todos os espaços de poder de inúmeras instituições estadunidenses, principalmente entre os membros da igreja católica de Boston e das forças armadas dos EUA.
Assim, as recentes denúncias de acosso, abuso e violação sexual de jovens (mulheres e homens) por parte de indivíduos pertencentes à classe social dos ricos e poderosos na sociedade estadunidense estão relacionadas predominantemente com a crise e com a decadência dos valores éticos e morais dentro da sociedade capitalista dos EUA e se manifesta por todos os níveis sócioeconômico culturais podendo ser melhor observada através da relação entre a luta de classes e o abuso do poder exercido pela elite estadunidense dominante sobre os indivíduos de classes subalternas.
Por último, gostaria de voltar a me referir  as tragédias e as catástrofes provocadas por mão e obra dos seres humanos onde podemos encontrar as guerras, os assassinatos, as torturas e o terrorismo provocados pelo governo dos EUA e seus aliados ocidentais (3) pois, do ponto de vista das tragédias provocadas por obra dos seres humanos, nenhum país tem provocado maior número de tragédias associadas à guerra, à tortura, ao assassinato e aos sequestros provocados terrorismo ocidental  na história humana como a provocada pelos EUA.
No artigo "Natural and Manmade Disasters and Mental Health" ("Saúde Mental e Desastres naturais e humanos”), os autores Satcher, Friel e Bell nos mostram, através de uma grande riqueza de dados, quanto uma descrição e uma avaliação equilibrada  dos fatores que causam crises, traumatismos e Transtornos de estresse pós-traumático (TEPT), incluindo os desastres naturais e os desastres criados por seres humanos.
Entre os desastres causados pelo homem, uma das causas mais notáveis dos traumatismos psíquicos é a violência causada por guerras constantes sendo esta o pior fator na produção de TEPT. A violência das guerras (criadas pelo governo dos Estados Unidos e suas forças militares) contra outras nações e contra os seres humanos são o fator principal que provoca o aumento da violência, do trauma e das crises fora e dentro da sociedade dos EUA. Os autores também mostram que o TEPT tem sido particularmente alto nas áreas que sofreram baixas e deslocamentos em massa. Os autores afirmaram que "após anos de sanções econômicas e duas guerras, cerca de 5 milhões de iraquianos passaram a sofrer ‘sintomas psicológicos significativos’ e pelo menos 300.000 pessoas relataram ter ‘condições graves’ de saúde mental"(4).
Historicamente, um dos eventos que mais contribuíram para aumentar o foco estadunidense nas crises e nos desastres (na área da doença mental e TEPT)  foi o tremendo desastre causado pela participação e derrota dos EUA na Guerra do Vietnã. Desde a Guerra do Vietnã, os desastres causados pelo homem aumentaram em proporção gigantesca e a principal força que provoca esses grandes traumas humanos continuam a ser as guerras intermináveis e o bombardeio de outros seres humanos liderados pelas "superpoderes" internacionais liderados pelos EUA.  
Desde as bombas atômicas estadunidenses que destruíram as cidades e exterminaram a população de Hiroshima e Nagasaki, o governo dos Estados Unidos e o Complexo Militar Industrial teem sido a principal causa das catástrofes e das tragédias no planeta Terra.
Ao longo do período em que tenho vivido nos EUA, assisti ao bombardeio estadunidense na primeira Guerra do Golfo da administração Bush (o pai), assisti ao bombardeio da administração Clinton sobre a Europa, assisti ao bombardeio do povo iraquiano durante a Guerra do Iraque, assisti ao bombardeio do povo afegão durante Guerra do Afeganistão, iniciada por George W. Bush (o filho) e depois continuada pela Administração Obama com a sua Guerra de Drones (5) contra os povos da África e do Oriente Médio (Líbia, Síria) cujo resultado mais notável é a interminável produção de milhões de refugiados que circulam pela Ásia, África e Europa.
Como se não fosse suficiente, o atual presidente dos EUA, Donald Trump (um milionário supremacista, racista e militarista) nos está ameaçando de começar uma nova guerra (uma guerra nuclear) contra a Coreia do Norte: a terceira e última guerra onde não haverá vencedores nem vencidos para contar a história da barbárie capitalista imperialista: a história da ascensão, da queda e do extermínio da civilização ocidental e cristã do nosso planeta terra.

1) Vejam a entrevista do professor James Petras “Obama tiene el récord de expulsión de inmigrantes en toda la Historia de EE.UU.” no link: http://www.globalresearch.ca/obama-tiene-el-record-de-expulsion-de-inmigrantes-en-toda-la-historia-de-ee-uu/5563686   

2) Democracy Now (Oct 27, 2017). “Trump Declares Opioids a Public Health Emergency But Dedicates No New Funds to Crisis” Retrieved from: https://www.democracynow.org/2017/10/27/headlines/trump_declares_opioids_a_public_health_emergency_but_dedicates_no_new_funds_to_crisis

3) Chomsky, Noam and Vitchek, A. (2013). On Western Terrorism: From Hiroshima to DroneWarfare. London: Pluto Press.

4) Satcher, D., Friel, S., & Bell, R. (2007). Natural and Manmade Disasters and Mental health. JAMA: The Journal of the American Medical Association, 298(21), 2540–2542.

5) Ver a nota 3.


domingo, 19 de novembro de 2017

Pensatas de Domingo. Guaiba



Para dar uma pausa em crises econômicas e eleições mal resolvidas, republico no domingo este artigo, um ‘recuerdo’ postado inicialmente em março de 2007 no Pensatas e neste Novas Pensatas em outubro de 2008.

A primeira vez que fui à Guaíba, ainda era uma aventura. Antes de mais nada esclareço que Guaíba neste caso não é o rio gaúcho, e sim uma fazenda em pleno recôncavo baiano, dos meus primos de sobrenome Prisco Paraíso (1).

Uma aventura que começava na forma de se chegar até lá. A gente madrugava para ir até o “Cais do Mercado”, na cidade baixa de Salvador para pegar o “vapor”, aquele mesmo que o Caetano cantou, o de Cachoeira.
A embarcação singrava os mares, atravessando a Baía de Todos os Santos, e adentrava o rio Paraguassú numa viagem inesquecível. “Quando chegar no meio da baía, o navio vai balançar muito”, preveniu tia Edith, com o ar professoral que os seus cabelos brancos e um passado de muitas idas à fazenda lhe proporcionavam. Dito e feito, quando o paquete chegou ao meio da travessia, jogou pra dedéu.
Coisa mais linda! Quando chegamos ao rio Paraguassú, sua largura, sua grandiosidade. A beleza de uma natureza privilegiada às suas margens. Nunca posso me esquecer daquele primeiro encontro com uma verdadeira lenda familiar. Meu pai me contava, desde que eu era pequeno, as cavalgadas, os passeios que se faziam na Guaíba. E estava eu ali, a cada nó navegado me aproximando...

Finalmente chegamos ao lugar em que íamos desembarcar, a ilha dos Franceses, bem no meio do rio. Daquele ponto em diante, saíamos do vapor e passávamos para canoas que nos esperavam para conduzir à fazenda. E o medo? Eu, um bicho de cidade grande, ali numa piroga, as águas ao lado, na altura do peito. O corpo abaixo do nível delas. As mãos a tocar o caudaloso rio. A sensação entre a surpresa e o medo.
Dez, quinze minutos depois, outra escala. Chegamos numa vila à “beira mangue”, onde morava a população local. Palhoças, casinhas simples enfileiradas, dezenas de outras canoas quase encostadas umas às outras. E ao fundo cavalos nos esperando. Nunca havia andado a cavalo. Tudo para mim naquele dia era uma grande novidade. Montamos os animais e pusemo-nos vagarosamente, em fila indiana a seguir uma estrada, melhor dizendo uma trilha que nos levaria à sede da fazenda, à “casa grande”.
O caminho, aos poucos subia cada vez mais. A casa ficava no alto. Era uma vista deslumbrante. Abaixo um grande vale em que se via o rio, as ilhotas em seu meio, e, bem em frente uma cidadezinha chamada Santiago, justo na margem oposta. Mais ao longe, Maragogipe, cidade maior, mas que podia ser melhor vista à noite, pelas luzes. Naquele tempo, anterior à CHESF (2), a prefeitura desligava a iluminação lá pelas 10 da noite. E era um programa, todos ficarem na larga varanda da casa para assistir a esse espetáculo.

Os primeiros dias foram excitantes. Passeios a cavalo pela manhã ou à tarde. Passeios a pé, pelas imediações. O “poço” com o seu jacaré. Cheguei a vê-lo. Atiramos nele, eu e meus primos André, Bebeto e Tuca. Mas o filho da mãe mergulhou. E por falar em atirar, caçamos alguns “passarinhos”. Êta maldade! Somente meu primo Chico tinha a coragem de saboreá-los, devorando suas cochinhas assadas. “Coi” de lôco!
E saborear era a melhor coisa. Principalmente no almoço e no jantar. A criadagem preparava quitutes os mais variados, com requintes dos pratos típicos, como moquecas de sirí catado, xinxim de galinha, caudinho de sururú e por aí afora. Tudo sempre muito bem acompanhado de saborosíssima farofa de dendê.

À noite, sentávamos na varanda, antes do jantar, e tio João (3) comandava o espetáculo de comer ostras. Aprendi que ao abri-las, tirando do fogo, espremia-se o limão bem no meio da concha. Observava-se o seu movimento. Caso ficasse parada, podia jogar fora. Tinha que ser sorvida ainda viva, e para tal precisava contrair-se quando a acides do limão a atingisse. A princípio era estranho, mas como nunca tive preconceitos com comida, logo estava fazendo tudo conforme os conformes.

Depois o jantar, e após a fila para jogar com tia Maria e tio João partidas de “Palavras Cruzadas”. Aquele das pedrinhas, também conhecido como “Mexe-Mexe”. As partidas começavam lá pelas oito e terminavam quase sempre de madrugada.
Quem ganhasse ficava na mesa, o mesmo valendo para o dia seguinte. O problema era ganhar do tio João, cuja cultura e vocabulário iam muito além de nossos reles conhecimentos. Ao lado o dicionário da Língua Portuguesa. Não valia inventar palavras. Qualquer dúvida, um dos contendedores podia consultar o dicionário para comprovar se a dita palavra existia de fato. As regras eram respeitadíssimas. Não valiam nome próprio, nem verbos conjugados. Estes, só no infinitivo.
Havia um detalhe. O tio César, marido de tia Edith, já falecido, havia construído com sua engenhosidade uma pequena hidrelétrica, apesar de ter se formado em direito e não em engenharia. Esta, lá pelas onze, onze e meia era desligada. Daí em diante o jogo continuava à luz de lampiões.

Hora de dormir. Hora de falar de fantasmas e aparições. Hora de falar de “mula-sem-cabeça”, de “curupira”. Hora de ficar com medo de adormecer, de se cobrir inteiro no quarto escuro, deixar só o nariz de fora das cobertas, apesar do calor reinante.
De manhã, galos cantando, tomava-se um lauto café da manhã, também regrado com quitutes bahianos, e mais ovos fritos, pães caseiros. Hummm, até lembrar dá água na boca. Em seguida começava tudo de novo.

Anos depois, morei em Salvador, no ano de 1982, quando fui trabalhar na DM9. Já casado, com meu filho à época com cinco anos. A Guaíba já não era mais a mesma. Para começar, a gente chegava lá de automóvel, parando-se entre a cozinha e a “casa grande”. Sinal dos tempos, tinha-se que implorar para alguém da aldeia ir fazer um “almoçozinho” pra gente. A peso de ouro. O progresso havia chegado, o sistema semi-feudal acabado. Era outra época. Por um lado, um tanto melhor. Mas, que ficava a saudade da fartura e dos quitutes de outrora, lá isso ficava.

(1) Meu avô paterno tinha muitas irmãs. Estas, ao se casarem adotaram os sobrenomes de outras famílias na Bahia. Como o acima citado Prisco Paraíso, e também Valente, Gordilho, Tourinho... e outros.

 (2) Companhia Hidro Elétrica do São Francisco.

(3) Tio João. Ou João Borges de Figueiredo, então deputado federal pelo PL, não confundir com o Partido Liberal, tratava-se do Partido Libertador. Depois, força da lei, transferiu-se para o MDB. Era casado com a prima a quem chamo “tia” Maria.
 irmã de tio César, este último casado com a prima dele e irmã de meu pai tia Edith. Tia esta que, aliás, em junho de 2007 completou um século de existência. Ufa!