domingo, 15 de fevereiro de 2009

De ditadura, contradições e variantes

Falei em democracia, e senti necessidade de abordar ditadura. Este texto foi originalmente publicado no “Pensatas” em maio de 2007. No entanto, julguei oportuno aprimorá-lo, acrescentando algumas reflexões devido à sua polêmica complexidade.

O “dictare” (do latim, ato de enunciar palavras que alguém escreve), deu origem ao verbo ditar, ato de prescrever, ordenar algum mandamento. Ditador é quem dita e ditadura é a ação de ditar, independentemente do regime político e da forma governativa em que esteja inserido. São ditaduras os governos presidencialistas, parlamentaristas, republicanos, monárquicos, despóticos, fascistas ou socialistas. Tenha o nome que tiver, origine-se em um único indivíduo ou em uma assembléia, esteja ou não distribuído por entre os chamados poderes legislativo e executivo, há, sempre, um órgão que emite determinações de cumprimento obrigatório por toda a sociedade, quer dizer: em todos há uma fonte do ordenamento jurídico.
Sua origem, a ditadura romana consistia em um governo temporário, previsto pelas normas “constitucionais” nos casos de emergência. Suspendia todas as magistraturas, com exceção da exercida pelo pretor, que administrava a justiça. Os poderes do ditador romano não se explicam fora de suas características populares. Gaios Julius Caesar foi um desses ditadores, cargo que exerceu após a guerra civil dirigida por Pompeu.
Na ditadura romana não havia parlamento, por outro lado, não havia também o despotismo. Ao invés de as leis serem feitas em assembléias, o eram com a participação de toda a sociedade. O ditador apresentava o projeto de lei à sociedade em geral, que se manifestava livremente, protestando contra ele, emendando-o ou enaltecendo-o. Após um prazo (em geral de três meses), o ditador avaliava as manifestações e retirava ou mantinha o projeto, tendo em vista o bem público. Em qualquer dos casos, submetia a sua decisão aos votos do eleitorado. Aprovado, o projeto convertia-se em lei. Havia nesta ditadura, uma democracia direta, muito mais ampla do que a dos regimes parlamentares.
Ditadura é, sem dúvida, uma palavra que em nossos dias tem uma grande extensão e, por isso, uma ainda mais difícil compreensão, mas poucas têm sofrido tantas variações em seu significado, gerando uma tão grande confusão terminológica. Tal circunstância propicia uma reflexão a respeito de como determinados interesses possam ter desvirtuado o seu sentido romano/primitivo. Os Jacobinos a utilizaram, para qualificar o governo voltado para a implantação da paz e a preparação da igualdade social. Antes disso, Voltaire a enalteceu.
Inspirado nos revolucionários franceses, Marx propôs a “ditadura do proletariado” (no socialismo) em substituição à “ditadura da burguesia” (no capitalismo), como fase preparatória (e temporária) da transformação do Estado rumo ao seu desaparecimento e como etapa transitória e necessária para extirpar séculos de exploração pelo lucro e a propriedade privada, preparando o advento do comunismo (1), uma sociedade sem exploração e sem classes. Não se deve confundir este conceito com as ditaduras fascistas (inclusive a nazista), ou ainda as reacionárias, como as de Franco e Salazar. Bem como as militares, bastante comuns na América, Ásia e África. Não se podem confundir também as “supostamente progressistas”, porque foram erradamente difundidas (2). As “comunistas” de Stalin, Mao-Tsé-Tung e as européias (dos países satélites da URSS), somam-se aos exemplos das distorções às origens romanas que surgiram e proliferaram em grande escala no século XX, alterando de forma completa e colocando o seu significado de ponta-cabeça ao igualá-lo à tirania.
Espero, com a explicação acima, ter contribuído para elucidar algumas dúvidas da razão pela qual Marx propôs a “ditadura do proletariado”, baseado no termo e no conceito temporário da ditadura romana, usual no século XIX (3). E também do porque com o passar dos anos e dos tempos históricos que sucederam, a expressão ficou em cheque quanto à sua origem e/ou interpretação, propiciando, inclusive, uma fonte oportuna para a contra-propaganda ao materialismo histórico por parte das classes dominantes, que muito bem souberam aproveitar a confusão causada com a proliferação de outras modalidades de regimes tirânicos e totalitários (ao serem classificadas como ditaduras), que se seguiram nas décadas subseqüentes.

(1) Houve uma divergência séria sobre esta questão da transição que originou uma ruptura na I Internacional entre os seguidores de Bakunin (anarquistas) e os de Marx (materialistas históricos). Os primeiros pregavam a transposição imediata para a fase comunista. Marx discordou disso em função dos séculos de exploração não poderem ser extirpados abruptamente. A primeira fase, também conhecida como socialismo, manteria o Estado em uma ditadura de classe (não de partido) que prepararia o advento da seguinte.

(2) Tão erradamente que nas propostas de Marx, o comunismo seria posterior à ditadura do proletariado e o Estado desapareceria. Pelo contrário, no conceito stalinista o Estado (dito comunista) assumiu proporções gigantescas comandado por um partido único. Uma antítese ao pensamento de Marx, no qual o comunismo somente poderia acontecer em uma etapa seguinte. Utopia? Talvez. Mas o correto é que o que foi implantado não tinha nada a ver com esta teoria.

(3) À época de Marx, não haviam ainda surgido ditaduras, tais como as conhecemos hoje, características e muito presentes no século passado. O seu conceito ao elaborar a tese estava assentado na visão clássica (romana) do regime.

10 comentários:

André Setaro disse...

Artigo lúcido e coerente. Interessante a conceituação exata do significado da ditadura na visão de Marx em sua época.

Jonga Olivieri disse...

E a contra-propaganda soube aproveitar-se dos caminhos que o termo seguiu no decorrer dos tempos.
Seria ingênuo supor que Marx tivesse proposto uma forma tirânica de governo, quando seu objetivo era alcançar uma provável "Utopia" para a sociedade, humanista que foi.

Ieda Schimidt disse...

Muito boa esta tua análise deste tema, que, na maioria das vezes esquecemos a sua origem romana, tamanha é a massificação que houve com ele.
Grande parte das pessoas nem sabem que ditadura pode ter sido mais democrática do que a democracia de nossos tempos dominada pelo poderio econômico do capital.
O fato de ter havido a postagem anterior enfatiza a comparação. Existem democracias tirânicas e ditaduras democráticas. Parece contraditório, mas é a verdade.
Quando falas da ditadura do proletariado e da ditadura da burguesia referindo-se à tese de Marx, tu lembras o que acontece nos EUA e seu pensamento único, sua tirania do politicamente correto, da hipocrisia política de nossos dias com seus partidos quase semelhantes, diferentes apenas na retórica e em algumas questões superestruturais.

Jonga Olivieri disse...

Existem governso ditos democráticos que realmente são mais totalitários do que muitas ditaduras (pelo menos no passado romano).
Mas o pior é que houve ditaduras em Roma que não corresponderam às suas origens porque foram tirânicas.
Não podemso esquecer que Julio Cesar foi morto porque pretendia dar um golpe...
O fato é que no mundo moderno ditadura virou sinônimo de governo tirânico. O que provocou toda essa confusão.

Anônimo disse...

Assim como a democracia curiosamente também a ditadura não é exatamente aquilo que pensamos. Pelo menos em suas origens romanas.
Gostei muito da diferença que você estabelece entre os conceitos de ditadura e tirania.
Mas, hoje em dia é muito difícil mudar isso. Já está incutido em todos nós o seu significado.

Jonga Olivieri disse...

Exto, hoje o significado de ditadura perdeu completamente suas origens romanas.
Ditadura e tirania são sinônimos.

Anônimo disse...

Você tocou em dois extremos. Democracia e ditadura. Duas análises bem complexas e que acho que você explicou muito bem levantando questões importantes, embora não concorde com todas elas.
Parabens.

Stela Borges de Almeida disse...

Acompanhanho sempre seus artigos/textos. Os conceitos de utopia, democracia e ditadura revisitados nos dias de hoje merecem,realmente, atenção. Fico impressionada com sua performance e capacidade de transitar na diversidade. Minha admiração Jonga.

Jonga Olivieri disse...

É bom que discorde de algo JR. Afinal este é um espaço democrático. Pelo menos no meu entender.

Jonga Olivieri disse...

Tento em pesquisas e alguma base em leituras passadas trazer esses temas, afinal importantes para que possamos nos situar no espaço/tempo de nossa existência e condição nos planos de indivíduos e sociedade.
Democracia, ditadura, e principalmente a utopia humana, a eterna busca de uma sociedade "perfeita" são assuntos fascinantes, não é mesmo Stela.
Quanto ao que fala de mim, obrigado pois a considero uma pesquisadora de grande qualidade e competência, o que valoriza mais ainda as suas palavras.