Estava a assistir “Os Imperdoáveis” (The Unforgiven), de Clint Eastwood, 1992, um dos melhores westerns de todos os tempos, e a observar Little Bill, o personagem vivido por Gene Hackman e classificá-lo, naquele instante, como o “bandido”. Parei para refletir o quanto, pela “receita típica”, ele poderia vir a ser o “mocinho”. Ora, fica evidente que Little Bill estava a tentar manter a ordem na cidade, combatendo pistoleiros errantes em busca da recompensa oferecida por prostitutas para vingar a agressão a uma delas. E mais, Little Bill, com as próprias mãos, estava a construir uma casa.
Ora, os clichês do faroeste sempre foram no caso do “mocinho”, o good guy que lutava pela “lei e a ordem”, e planejava o seu futuro para ter um lar e uma família a ser formada com amor, fé religiosa e bons costume (1). E neste sentido, do ponto de vista clássico, Little Bill é o “mocinho” da história. Resultado de valores puritanos a tentar – e a conseguir – prevalecer de forma “simplista”, mas imposta na mitologia da construção de um vasto e selvagem território, na realidade formado por uma população brutalizada, e conquistado com os tiros de “bandidos”, e as “prostitutas”, a dançar Can-Can nos Salloons regados a litros de uísque. Estes, símbolos reais do homem e da mulher (padrão) da sociedade estadunidense.
O moralismo puritano criou, e o cinema ajudou a consolidar, os Tom Mixes, Gene Autrys, Roy Rogers e tantos outros esteriótipos do chamado mocinho bonzinho e perfeito... Tão perfeitos que ao se degladiarem com os bandidos “maus”, seus lenços não desamarravam, as fartas franjas de suas roupas não desfiavam ou rasgavam e seus chapéus sequer caiam. Foi a fase ingênua do western, num país também ingênuo, sem muitos questionamentos quanto ao seu modus vivendis. Pelo contrário, no auge de enaltecê-lo, chegaram a batizá-lo de “american way of life” e achar que era um exemplo para o mundo.
Mas é claro que isto passou. A partir da guerra do Vietnam os Estados Unidos descobriram um lado nada “puro” de sua sociedade. Heróis do comix, como o Super-Homem, passaram a ter clones maldosos, e, no próprio faroeste seus mocinhos fantasiados (prontos para entrar num carro alegórico de qualquer Escola de Samba), cederam seu lugar a um personagem ambíguo, sujo e maltratado pela aspereza de um ambiente hostil. Roupas empoeiradas, barba por fazer, guimba de cigarro pendurada no canto da boca, influência direta do western spaghetti e do despertar para uma auto-crítica como nação... Seus erros e fraquezas a transformá-los em homens comuns.
Neste ponto, “Os Imperdoáveis” é uma lição ao questionar estes valores. Os outros personagens, a começar pelo próprio Eastwood no papel de William Munny, um antigo pistoleiro aposentado, que se regenerara a partir de um casamento, tornando-se decadente após a viuvez, responsável por duas crianças órfãs de mãe, a criar porcos nos confins do Kansas. Um ex-assassino profissional, um homem “mau” que se arrependeu do passado cruel, mas que se vê tentado pela recompensa oferecida por prostitutas de uma pequena vila para vingar-se de alguns cowboys, especialmente o que marcou a faca o rosto de uma delas, deformando-a.
Mocinho ou bandido? Pela narrativa e pelo enfoque da história, William Munny é o “bom da fita” (ou mocinho). Mas será? Nos valores do western ingênuo seria o bandido. E aí o valor sociológico deste filme. Eastwood questiona a moral clássica da sociedade estadunidense passo a passo, a cada instante de sua narrativa. Uma obra prima como western. Uma obra prima como análise de um país e sua “moral”. Como diretor, e dada a sua experiência no gênero, Eastwood demonstra um senso de observação em detalhes e uma sutileza, que, quanto mais se assiste, mais se gosta e mais se aprende.
Ao colocar de ponta cabeça mitos do faroeste, aproxima-os muito mais de uma realidade plausível. Li em determinada ocasião um livro sobre aquele período histórico que diz que emboscadas e tiros pelas costas eram muito mais comuns do que os famosos duelos frente a frente, que a literatura novelesca de autores (na sua maioria medíocres), e o próprio cinema glamorizaram. Em “Os Imperdoáveis”, até o mito do direito de estar armado para morrer, tão vangloriado em historinhas do faroeste tomba por terra. Um sujeito é fuzilado na “casinha”, simplesmente fazendo suas “necessidades”, sentado, desarmado, completamente vulnerável e indefeso.
E o mais importante de tudo: a visão maniqueísta do bem e do mal... o bom e o mau, o “mocinho” e o “bandido”, mesclam-se em valores reais, palpáveis que mostram que nem sempre se pode ser apenas um ou outro, mas que todo ser humano por vezes é bom ou mau, dependendo das circunstâncias, momento ou ambiente em que vivem. Hoje, é o mocinho, mas amanhã... Bom, amanhã, se não tomar cuidado pode ser o bandido. E vice-versa.
(1) É importante ressaltar que neste universo também existia o “herói” solitário, que vinha de algum lugar, e, ao final, posta a ordem na cidade seguia o seu caminho errante. Um dos melhores exemplos deste tipo está em Shane (Os Brutos Tambem Amam) de George Stevens, 1953. Mas é fundamental levar em conta que este também é o “bonzinho”, cujo caráter é impecável.